domingo, 14 de fevereiro de 2016

Quando o galo cantou

eu ainda estava agarrado ao seu pé
e a sua mão.
os músicos mais notáveis tocam
em seus telhados
junto de negros gatos
em dias de claridade
azul, ninguém faz a mais remota
ideia
as vidas mais ilustres
são as não circunscritas
nos imaginários
inférteis.
vê uma camisa abotoada
ao incompleto
sem saber que hoje
he amado una mujer
a mais linda
não fumou por que não fuma,
apesar de que suga
ao menos três cigarros por ano.
levantou-se
subiu no telhado da casa
para tocar saxofone.
não foi dia de feira
nem de apanha dos morangos
mas he tomado água de coco
e comeu morangos.
a semana passou assim
e nada existiu mais
satisfeito.
a mulher por sua vez
preferia seriguelas bem maduras
e justamente esperou o dia
de feira para abastecer
a geladeira com caldo de cana
sem saber que o homem
que assoprava no teto
era o mesmo que descascava
cana e coco com dentes.
fazia anos
ela não comprava mais roupas
começou a costura autodidata.
seus pelos não arrancava
com os outros,
e sua vaidade era manter a pele negra bem
hidratada.
havia uma coisa que faziam
sem comentar a ninguém:
ir ao teatro.
depois perguntavam-se
“e aí, gostou?”
nunca gostavam da mesma peça
ao mesmo tempo
era um acordo por acaso
calhou de ser assim
se um gostasse, o outro não.
na verdade, não sou músico,
ele uma vez disse.
eu sei, mas acho que você é
sim
ela respondeu sem saber
que daquele dia em diante o consagrara
o maior musicista do país.
certo de fazer melodias simples demais
subia ao telhado
tal qual galo madrugador
para tocar melodias que dessem
boas notícias
a ela.
nunca se deram conta
que desde o primeiro dia
viviam para dar boas notícias um ao outro:
era a Lealdade.
durante o carnaval ela admitiu
não saber as regras da festa.
ele a olhou, não disse nada
e ficou claro que também não sabia.
viveram dois dias da folia
e ao final
ainda não sabiam bem.
Pablo Neruda morreu de golpe
no Chile
porque era o poeta do amor
eterno
e não aguentou.
não aguentou o quê,
ele quis saber.
não aguentou o tédio
de elevar lealdade
ao governo militar,
foi embora para se manter leal
a Matilde.
gostaria de chamar minha filha
de Matilde, ele disse.
gostaria de chamá-la “Caetana”.
era assim que cada um desaprovava o nome
eleito pelo outro
mas sabiam que na hora
viria consenso.
se um dia você desejar
outra mulher,
ele falou,
e quiser ir embora dos meus braços para viver
lá,
eu ainda vou querer
te dar boas notícias.
E mais do que isso,
vou precisar encostar meus lábios nos seus lábios
para te dar
notícias.
seus olhos são grandes o bastante
para que não me esconda nada,
ela disse,
toda vez que alguma coisa ameaça
eu sei.
e se acaso algum dia um homem te leve de me preferir,
ela continuou,
é só eu morder um morango
ou uma maça
para continuar a ter
seus beijos.
não era a primeira vez
daquela conversa, e a cada uma
iam aprimorando a tristeza
que passava a melancolia
e logo se perdia
num silêncio que era o medo
de fundo
do fim acobertado
pela distração cotidiana
ou pela alegria de serem assim
tão juntos.
Anote aí, ela disse,
Na verdade eu prefiro melão,
E eu, ele disse, sou mulher e escrevo alguns poemas
Sobre as suas fotografias.
deixe esse ponto brilhar no atlântico
sul.