domingo, 23 de outubro de 2011

Dia claro

Um dia ela aprende que o corpo é todo coração, ela vê que o corpo é copo de cristal que guarda água. Um dia ela vê que é manteiga derretida. Um dia ela senta e chora, e pára para chorar, e se escuta música, chora, e se lê poesia, chora. Um dia, quem sabe um dia. Um dia ela aprende a lidar com os cabelos e deixa-os serem sem nó, e pára de amarrá-los sem dó. Um dia ela aprende que sorrir nem é obrigação e começa a rir mesmo à toa. Quem sabe um dia ela não saia por aí se sentindo livre? Um dia, quem sabe, iria ser bom.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O velho pássaro

Vê, passarinho
O mundo insiste lá
Fora da tua gaiola.

Olha a copa da árvore
que nunca sonhaste pousar
Escuta o vento
que balança as folhas.
Sente,
Sente esse vento
em tuas asas,
passarinho,
O vento
que eriça tuas ralas penas.

Guarda teu canto -
Não te canses agora
que já é tarde
para pensar
em liberdade

Mas olha este céu
acima da tua gaiola,
Vasto e azul,
O céu que tua vida
empoleirada
ignorou.
Não te assustes,
não abaixes o bico
tão amedrontado
O céu esteve aí
todo o tempo.

Escutas?
Não inclines a cabeça
duvidoso
Pois são outros como tu
que cantam longe
Lá fora.

Aproveita o sol
e o vento
Isso, pode fechar
teus olhinhos de pássaro

É chegada a tua hora.
Vê o mundo
Sente a liberdade
Toma-a como tua
Dá teu derradeiro canto
Eterniza tua vida
nesse instante de glória
E suspira leve
já no fundo
de tua gaiola
Antes de atinar
que te privaram
o vôo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Armado

Porque todos os dias eram iguais. O mesmo ônibus, o mesmo caminho, o mesmo andar, o rosto trancado, o coração protegido. Todos os dias eram os mesmos, a mesma falta de novidades. Sentia-se vazio. Não consigo me livrar do estigma de solidão, pensava. Nunca se acostumara a ser sozinho, justamente o que sempre fora. Alegava que... Ora, estava cansado demais para alegar. Parara de arranjar pretextos, obrigara-se a ficar calado, fingia bem que acostumara-se. Certo dia, deram-lhe uma luz, um prazer tolo, ficou radiante. Queria aquilo para sempre, nunca mais serei sozinho, pensou. Mas no dia seguinte voltara à solidão sem ao menos dar-se conta. Pois tinha a cara dura, o coração armado, e nem percebia. De vez em quando sentia uma inexplicável vontade de chorar, não era bem vontade, era um súbito de chorar. Seus olhos lacrimejavam e ele só notava-se chorando quando percebia que tentava fazer com que ninguém olhasse para seu rosto.
As vezes alguém se aproximava, as vezes alguém o amava as escondidas, mas é que ele tinha a cara dura e o coração armado, nem via. Se lhe sorrissem, ele guardava o sorriso no coração, se alegrava, se envaidecia, até. Mas no dia seguinte não olhava de novo no rosto de quem lhe houvesse sorrido – tinha a cara dura e o coração armado. Só sabia amar de longe, olhar de longe, viver de longe, e sorrir passando rápido, é que tinha medo de gente, é que duvidava muito de se por em prática. É que tinha a cara dura e o coração armado. Se a cara não fosse dura, o coração, que palpitava-lhe no peito querendo baixar a guarda, faria o semblante todo esmerar-se de si. E os olhos, doces, até então disfarçados pela cara, apareceriam e ele estaria desprotegido.

sábado, 13 de agosto de 2011

Agosto

O principal que acontece em mim não é dito: ou se percebe ou não se saberá. O principal que me acontece dá indícios, que disfarço ou deixo. O principal que acontece em mim acontece e não é relatado - consinto. Meu principal é mudo porque não sabe falar, é forte, é bravo, é sensível, é heróico, é tudo.
Se vierem falar, defender causas bonitas e justas, contar de sentimentos nobres, quem saberá se importa ou é verdadeiro por parecer tão importante? O que é importante eu não digo – o que é mais importante eu não digo.
Tem gente que fala qualquer coisa, tem gente que fala demais. O que me move eu prefiro não dizer, é muito delicado e genuíno. Por que diriam os outros? E não dizem, só falam para terem alguma relevância. Mas tudo o que têm é temporário. Falam tão seguros e quem vê pode pensar: e eu? não seria melhor também falar? Mas o que eles falam logo perde a importância. O que me move é o que não é dito. O que me move, se não percebem, não saberão. A comoção de se sentir por uma causa.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Esse sonho doce

Esse sonho
persistente
Insiste
Em não sair daqui.

Esse sonho,
que em vão tento dissuadir,
Insiste em ser meu
Que o lugar dele é aqui.

Esse sonho
Bom, sonho bom,
Quer que eu o leve a algum lugar
Quer se realizar em mim.

Esse sonho,
Que vive sendo notado
Que parece pesar meus dias
ao ser adiado

Ah, doce sonho...
Que resiste ao tempo
e ao desanimo.
Forte,
Quase heróico,
Quer realizar as façanhas que o prometi.

Tímido e medroso
dos ouvidos e pensamentos
alheios.
Em parte, ali guardado
numa caixa em meu quarto,
quer vibrar em quadras fora dali.

Esse sonho,
juvenil e tolo
mas doce,
Tão doce...

domingo, 10 de julho de 2011

Distantes

Ficava de plantão, tudo o que queria era que alguém precisasse dele. Se distraía com passatempos pouco produtivos e raros, porque tudo o que queria era que alguém precisasse dele. Não ligava, tampouco cogitava procurá-los, mas tudo o que queria era que precisassem dele. As vezes falava por alto com alguém, as vezes até o chamavam para um passeio cheio de gente, mas ele não ia, não queria se aglomerar, tudo o que queria era que precisassem dele. Sumiam, sumiam todos, sumiam por tempos, sumiam sempre, e tudo o que queria era que alguém precisasse dele. Ele ficava sozinho, calado, pensativo, aprendera a lidar com a solidão, e mesmo assim só queria que alguém precisasse dele. Olhava o telefone, tinha raiva que ele nunca tocava pra ele – tinha raiva que não precisassem dele. Esperava notícias, cogitava encontros ao acaso e surpresas que fariam para alegrá-lo, precisava tanto que precisassem dele. Esperava alguém, queria companhia, não suportava mais esperar que alguém precisasse tanto dele. Rabiscava folhas de papel, lembrava de uma ou outra pessoa que poderia precisar dele. Quando precisarem de mim, pensava, eu não vou estar lá – queria se vingar, só de raiva de ninguém precisar tanto dele. Gostava que precisassem, se sentia forte, se sentia cheio, preenchido. Ele nunca precisava deles, quando não estava bem, calava-se – na verdade, não sabia pedir ajuda. E quando estava bem, calava-se também, não sabia direcionar seu ânimo. O que eu não sei, pensou, é ser especial. Quando precisavam, ele ia lá, despendia cuidados, tempo e sutilezas. Ele os colocava de volta no ar, e eles só vinham se precisassem de novo. Tinha medo de precisar e eles não estarem lá. Diziam-se tão seus, mas ele que era deles. Eles iam e vinham quando bem entendiam, sabiam o que ele não queria ver: sempre estaria lá por precisar tanto deles. Só queria que estivessem presentes, e precisava tanto que precisassem dele, porque, lhe parecia, era só quando surgiam – mansos e seus.

sábado, 9 de julho de 2011

Desarranjo

Ela prometeu ser diferente – que ela era diferente. Acreditaram todos. Ela veio uma promessa – ela própria era a promessa, e conduzia promessas suas, distribuindo-as com olhos e ditos animados. Era tão autentica que todos quiseram crer. Ela gerava expectativas. Não era de avisos, era toda imprevistos: seu charme, seu importuno. Ora casual, ora descabida. E como era sempre do mesmo jeito, dependia do humor, ou dos santos baterem, pra gostar dela. Ela preenchia se estava por perto, tinha tanta certeza que era motivo de alegria – e de fato era, que abria espaços, cativava mais pessoas, expandia-se para ser mais. Certa vez ausentou-se um tempo, sentiram tanto a sua falta... Chamavam-na pra perto, mas ela não podia, não tinha tempo, tinha que trabalhar, estava a conhecer gente por algum canto e deixando vazio o canto que conhecia. Até que voltou, querendo que a amassem por ser ela tão boa. E falava demais, e ria de si, e não tinha mais ouvidos porque queria que soubessem dela, e interrompia se falassem, e falava sem parar, e falava, e nada era tão interessante quanto seus casos, seus romances, seus dias e seus novos amigos. Enganara-se consigo mesma. Estava um equívoco. A espontaneidade tornara-se pretensão, só ela não via. Perdera a dose de si, o ego lá em cima a superestimá-la. E quem a tinha visto antes da ausência sentia certo incômodo, padecendo com esperança de tê-la realmente de volta. Preferiam até que ela fosse um pouco embora, pra dar tempo de se rearranjarem com a novidade – ela, que era a novidade. O hábito de sumir e reaparecer, antigo porém desconhecido, a tona: Ela sumiria, com as promessas, com a graça, com a beleza antigas, e também com a leviandade, a presunção e a inebriada vaidade. Ela sumiria e voltaria para uma visita, talvez um almoço, talvez um dia. Os outros esperariam seus regressos, tão vazios dela, sem saber se ausência era saudade ou alívio.

sábado, 2 de julho de 2011

Feito um artesão

Perfeição. Talhava, esculpia, adornava, afastava, olhava, voltava e ajeitava. Procurava a perfeição. Não queria fios soltos, linhas tortas, botões fora da casa. Adornava, adornava, adornava. Quanto afinco, tanto cuidado. Pisava devagar, usava movimentos leves, feições suaves, voz baixa. Era tanto tato, tanto tato, tanto. Tato. Pegava devagar, não queria arranhar, tirar o pleno valor. Que tinha até medo de tocar. Ensinaram-lhe a não mexer em nada, e assim aprendera ao pé da letra. E se manchasse? E se quebrasse? E se machucasse? E se...? Quem saberia. Era melhor que ficasse tudo intacto. Ora conduzia, ora deixava-se conduzir – pelo menos a culpa não seria sua, caso vacilassem. Evitava gritos, tumulto, gente. Evitava tanto gente. Evitava falar demais, sorrir demais, calar demais, emburrar demais. Medindo-se, procurava o ponto médio. Era pra não se exceder. E quando vinha gente pra perto, e não podia evitar, não sabia mais nada da perfeição. Tudo o que tinha era tão torto, tão desastrado, tão simples e desarranjado. Todo o trabalha fora em vão, toda a árdua talha, ficava sem nada. Tudo o que tinha era a espontaneidade. Era tudo o que precisaria ter ao alcance das mãos. Espontaneidade: como tê-la, como tê-la? Pensava em desespero. Coçava o nariz, desabotoava um botão, puxava as mangas da camisa, obrigava os olhos a aquietarem-se, colocava as mãos... Onde pôr essas mãos? Colocava as mãos ora no bolso, ora cruzadas, ora sobre as pernas. Então, era tudo o que tinha de espontâneo para ser usado. Pose. Tanta pose. Já não sabia nada de ser natural. A perfeição esvaziara-lhe o jeito. Mas ainda enchia o peito dum orgulho tolo, duma vontade de ser especial, de ter qualquer atenção. Era um tal de parecer assim, um tal de parecer assado. Perdera-se. Os olhos estavam sempre ou endurecidos, ou vacilantes. Queria ter alguma distinção, procurava por aí, em alguém na rua, ou da TV. No homem de fala arrastada do tal filme, na moça cheia de graça que passava na outra calçada. Queria a perfeição, e por dentro: tudo intacto.

sábado, 21 de maio de 2011

Pretensão

As vezes quero
uma coisa
sem querer –
querendo
que tudo o que você quisesse
fôssemos eu e você.

Antiga Musa

A antiga Musa recolheu o encanto para si e plácida se foi. O baque da porta fechando foi mudo, nada se ouviu em sua partida e a brisa foi abrigo. Ninguém jamais ousaria ditar seu nome ou cogitar sua presença. A Musa foi-se e o que estava feito estava.
Ela tinha aspectos finos que qualquer um poderia pegar e criar para si o que dela achasse mais conveniente. Tinha esse poder, sem saber, ela tinha tal poder – o que nela fosse recriado seria puro e mais uma faceta sua, verdade e ilusão, seria motivo de alegria, orgulho e inspiração. Seria justa fantasia.
As vezes, ela era calmaria, brisa, solidão que queria estar só. As vezes colo, aconchego, calor. Outras, ela parecia ser toda luz, toda sorrisos, toda toda.
Ela era mansa, tinha a fala aveludada, a voz entre o rouco e o doce. Uma voz que buscava para as manhas ensolaradas, emoldurava as tardes preguiçosas e embalava as noites quietas.
O nome da musa é aprazível e suave, tem sabor do que se quer sentir, e dizê-lo é evocar sua presença sem ter. O nome guarda a presença e dá vontade de buscar-lhe a um encontro, e reviver seus gestos, seus dengos, seus tons, seus sobressaltos.
Um dia, ao caminhar, a musa soltara os cabelos. Não houve um que não quisesse saber seu nome, que não olhasse, que não ansiasse amimá-la. Pelo caminho, ela ia desatenta, nem os gracejos ouvia. Tão encantadora. Que beleza mais distraída a sua. A pele lisa e sem pinturas, as vestes leves, o colo nu. Vivia a tenra idade, a inefável idade. Seu modesto feitio afastava indícios de presunção – não era de vaidades ou afetações.
A Musa foi sem ao menos saber que é tudo que pode inspirar os poetas. Seguiu seu caminho deixando só um rastro, que mais parecia um feixe de luz.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sopro

Dormia um sono pesado. Dormia de exaustão, porque o corpo já não se agüentava acordado a esta altura da noite, porque já não sabia o que fazer de si e o sono veio-lhe silencioso demais para ser negado. A barriga indo e vindo, enchendo e esvaziando de ar, sinalizava a respiração que era vitória sobre a morte. A serenidade do seu rosto adormecido não era partilhada ao acordar, quando a noção das coisas parecia-lhe vaga e passageira e todos os planos para o futuro careciam de pilares firmes. Tudo o que tinha era a sua vida e a dos que estavam a volta e sua fé - dava graças a Deus por isso.
Apesar de tudo, dormia. Dormia um sono que ao mesmo tempo era alívio e pesadelos. Mas dormia. Dormia porque não lhe restava mais o que pudesse fazer, era modo de chegar mais depressa o dia seguinte e de não ver o tempo passar. Virou-se para o lado e ajeitou a cabeça no travesseiro como se tivesse acordado, coçou o nariz e deitou a mão adormecida no sofá. Esticou as pernas involuntariamente e tocou com os pés o alguém que estava sentado, acordado, ao seu lado, na outra ponta do sofá, zelando o sono alheio sem conseguir encontrar o seu próprio. Seus olhos amigos olhavam o ser adormecido tentando dar-se conta do que aquela cena de fato representava. Por um instante conseguiu e sabia que essa consciência era fugaz e que logo sentiria-se incapaz de definir ou saber o significado daquele sono pulsante ao seu lado. Era vida, vida que havia ali. Teve vontade de chorar. Sentiu alívio por poder ter aquele alguém sob seus olhos. Continuou com os olhos fixos, quase vidrados, sem conseguir desviá-los dali, sentindo uma gratidão tão grande que sentiu calafrios e seus pêlos arrepiaram-se. Enquanto a noção de vida percorria-lhe de uma maneira clara e eficiente, não podia desgrudar os olhos do ser que dormia, queria prolongar essa sensação. Pegou a mão que repousava adormecida no sofá, levou-a aos lábios e deu-lhe um beijo leve e luminoso, quase como uma benção secreta, sentindo-se tão feliz por sentir aquele calor, parecia que havia uma brisa fresca dentro de si. Fechou os olhos, ainda segurando aquela mão quente entre a sua, que já começara a suar, e começou a orar. Em sua oração agradecia com todas as suas forças e queria que houvesse ainda mais fervor em suas preces, de modo que, ao rezar, apertava os olhos já fechados como se aquilo pudesse fazê-las chegarem mais rápido e fortes ao céu. Antes que tivesse consciência do término de sua oração, adormeceu.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Fotografia

Aquela foto provocava-lhe certa comoção. Um não sei o quê de coisa vivida vinha à tona, outro tanto de ausência. Era um alegrar-se tão triste que não sabia se ria, se chorava, então fazia os dois, a contragosto, com jeito de quem quer fazer mas não quer nem que as paredes saibam que os faz.
A foto olhava-a tão intensamente que as vezes parecia respirar. E lhe sorria de um jeito já conhecido. Inserindo-se no momento presente, trazendo o que se fora, o que poderia ter sido e não foi, o que foi e continuará sendo, o que nunca foi por opção ou comodidade, o que sempre quis ser e o que será. Mas sendo tudo quanto pode.
E mesmo assim tão imutável a foto, a cena, a vibração, o sorriso, a vivacidade, a profundidade, o viço. E a beleza eterna.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Os dias

Poderia atribuir
adjetivos aos
dias:
vazios, imóveis,
iguais.
Mas os dias são
só dias. Nada mais.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A bondade

Foi quando ela entrou pela porta. Olhou para os quatro cantos sem ver realmente. Baixou os olhos desconfortavelmente e sentou-se no acento mais próximo. Ali tudo estava visto e sabido. Ela era a menina dos olhos. Dos olhos de quem? De quem quisesse amiga ou namorada ou companhia. Ou ainda de quem sentisse falta de gentileza.
Nos olhos dela havia, sobretudo, boa vontade. Boa vontade esta que fundia-se e confundia-se com ternura. Que aos olhos mais desatentos era apenas gentileza. Apenas gentileza... A gentileza, que não consegue ser “apenas”. A gentileza é a gentileza e já é um carinho.
Tinha ares de amiga. Era bater os olhos nela e ver que ali existia pessoa de verdade, pessoa boa. Seus olhos davam grande contribuição para esse aspecto: meigos, mansos – uns olhos de paz. Era, também, atenta. Talvez conseqüência (ou uma das causas) da boa vontade que levava e fazia sentir. Não era, de longe, perfeita. Mas não é difícil supor que de perto talvez pudesse parecer. Ela nem mesmo tinha consciência de seus encantos, julgava-se da maneira mediana que uma pessoa pode julgar a si: estava na média da beleza e da educação, não era nem feia nem muito bonita, talvez fosse suportável por algum tempo e tinha modos convencionais. Seu pior defeito fosse não ter consciência de si. Ou não, talvez, se tivesse consciência de suas belezas mais sutis e delicadas, talvez começasse a usar suas formas a ponto de desgastá-las ou deixá-las menos interessantes. Talvez tornaria-se vulgar como as outras, que dependiam excessivamente do encanto proposital. Mas isso não pertencia a ela, não nascera assim e dificilmente viria a corromper-se. Ela era limpa de ornamentos e isso a tornava única sem que ela se desse conta ou se orgulhasse ou envaidecesse.
E ninguém entendia, mas todo mundo sabia que ali havia bondade. A Bondade que ninguém sabia por que nem de onde vinha.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O metrô

O metrô demorava a chegar. A espera tinha um barulho de ventilador e um vento ralo. Enfim, chega. Uns andam devagar enquanto esperam-no parar, as portas abrem-se: todos entram, poucos saem. Estava cheio, mas não lotado - alguns ficaram de pé.
O metrô logo começa a andar. A garota de mochila olha em volta, quase despretensiosamente e, quando voltaria o olhar para si, dá de olhos nos olhos de um garoto que a olhava pelo reflexo da janela. Surpreende-se e fixa, rápida, o olhar em um outro ponto qualquer. Passaram-se segundos e quis olhá-lo novamente.
Ele fitava o chão. Bonito, ela pensou. Sozinho, sentado numa cadeira do canto, quieto, parecia ter pensamentos a distraí-lo, mas voltou-se de novo para a garota. Desta vez, era ela quem olhava o chão. Também parecia repleta de pensamentos e ele quis conhecê-los. A garota, acreditando o garoto estar olhando para o chão ou talvez para as paredes, tanto fazia, pousou olhos certeiros nele.
E de novo cruzaram-se os olhares. Encanto. Encantaram-se, então.
Ela virou o rosto para o outro lado, tamanho o susto. Ele, mesmo abalado, confirmou olhos intensos nela.
A garota desistiu de fitá-lo. Estava fazendo o que? Flertando? Deu-se um nervoso em seu estômago e veio-lhe vontade de rir. Prendeu os lábios para não parecer louca. O garoto, vendo que ela olhava para o lado oposto, virou seu rosto para a janela, mesmo tendo só paredes lá fora.
Ninguém havia percebido, mas algo acontecia naquele vagão. O penúltimo vagão. O primeiro amor.
A garota juntou sua coragem e decidiu olhá-lo mais uma vez. Ele tinha um jeito manso que a fazia querer tê-lo por perto. Nesse instante não a olhava, mas mexia nos cabelos como se soubesse estar sendo observado. Parou de mexer nos cabelos e olhou para frente. Estava sério e não carrancudo, tinha simpatia nos traços e era virilmente doce. E quanto mais ela reparava, mais encantos apareciam. Sentiu-se boba por estar tão boba. Parou de olhá-lo.
Os pensamentos dele eram um, eram ela. Sentiu medo de nunca mais vê-la. Quis levantar, perguntar seu nome, sorrir e segurar sua mão. Sentiu-se bobo por estar tão bobo. Mas só conseguia pensar nela.
Olharam-se instintivamente. Admiração. Admiravam-se, enfim.
Compreenderam-se com perfeição. Souberam um do outro como não sabiam de mais ninguém. Os dois estavam imóveis ainda descobrindo-se, mas não tinham outro nome para aquilo senão amor. Amavam-se sem entender como. Sem imaginar outro amor. Sem pensar no instante seguinte. Como não achavam possível.
Sustentaram os olhares. Ele sorriu sem medo. Ela sinalizou com um meio sorriso que estava feliz.
Continuaram. Ele prendeu o riso e olhou para o alto depois de novo para ela. Ela riu contente sem conseguir conter-se ou tirar os olhos dele.
Fitaram-se até estarem íntimos. Ele sorriu e, virando as palmas das duas mãos para cima e encolhendo os ombros como quem não consegue entender, quis saber se ela entendia. Ela fez que não dando de ombros para entender qualquer coisa. Nesse instante ele já viajava pelas ondas dos cabelos dela – como brilhavam. E ela olhava-o como se o esperasse terminar de estudá-la.
Ele adorava cada parte daquele ser: boca macia, dentes meio voltados para trás, olhos grandes e pidões como os de seu cachorro, nariz singelamente torto e pequeno, cabelos volumosos, rosto fino e bem contornado. Adorava até mesmo aquelas pernas suaves e curvilíneas, sensualmente morenas. E quando ela deixou escapar uma risada da demora dele em olhá-la, a voz macia e doce, até meio infantil, saindo daquela boca que mostrava os dentes brancos, parecia feitiço bom.
Ele tinha cabelos claros, curtos e macios jogados meio para frente meio para o lado, seus olhos eram verdes e os mais sinceros que ela já vira. Quando sorria, seu sorriso mobilizava todo o rosto e não havia parte que não sorrisse. Ela via-se eternamente olhando para ele. Sentiu vontade de caminhar numa praia vazia, num fim de tarde, talvez dividir um sorvete, tê-lo deitado em seu colo e afagar-lhe os cabelos enquanto riam sossegados. Voltou a si quando percebeu que ele ria da sua atenta distração.
E quiseram tocar-se, sentir o cheiro um do outro, respirar o mesmo ar. Mas o trem parou e garota desceu na estação anunciada.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Sobreviventes da Serra

Em meio ao caos e ao desespero, uma água grossa e contínua vinda do céu, a tempestade trazia a tona a tragédia. Lama, casas desfazendo-se, famílias e bichos perdendo-se. Medo do fim do mundo. Notícias pela TV e falta de notícias. Só quem estava lá e sobreviveu pode dizer o que foi. Pode-se dizer que quem sobreviveu nasceu de novo. Milagre. Deus. Conspiração do Universo. Sorte, parece ser o menos certo deles.
Uma família deslizou no barro sobre um pedaço de laje da cozinha. Viveram. Por um milagre. A voz de um deles dando notícias ao telefone foi alívio e certeza, gratidão e felicidade. Estão vivos, graças a Deus.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Um sonho de fruta

Era uma vez uma mini-mulher melancia. Desde pequena seu sonho era ser mulher fruta. Ninguém acreditava que pudesse ser realizado, mas conforme ela foi crescendo, todos realmente começaram a enxergar nela uma menina-fruta-prodigio. Num belo dia, ela decidiu fazer algo radical: se pintar de melancia e sair na rua assim, tinta e pele, só para chamar atenção. Quem sabe não a chamariam para a Playboy? Ou até mesmo para a revista Sexy, para ela tanto fazia. Mas começou a chover, sua tinta corporal começou a derreter e ela, desesperada, saiu correndo até encontrar uma feira. Na feira, pegou a maior melancia que viu, deu um soco no meio e começou a comer desesperadamente. Segundo ela, se comece muita melancia, transformaria-se numa. Bem, lógico que não foi o que aconteceu. Então, quando chegou na décima primeira melancia, decidiu parar de comer, já que continuava igual. Ela ficou traumatizada, coitada. Não entendia como um talento tão evidente poderia ser desperdiçado. Até tentou explorar outros talentos, mas foi pior: descobriu não ter nenhum. Bem, ela tinha um do qual se envergonhava, que era fazer programas, mas só fazia nas horas vagas, escondida de todos.
Um dia, acordou determinada: não poderia deixar passar mais tempo, se não realizasse seu sonho frutífero ela desistiria dele pra sempre. Trágico, não? Pois é. Ela foi para o shopping, entrou num quiosque que lá tinha, subiu no balcão, ligou o radinho no último volume do “Créu” e começou a dançar. Uma multidão aglomerou-se a sua volta. Quando finalmente havia terminado a velocidade 5, foi aplaudida. E todos se perguntavam o que aquela mulher pretendia. No meio de seus agradecimentos vieram os seguranças do shopping, desceram-na do balcão e levaram-na dali. Foi acusada de atentado ao pudor. Chegou a ir à delegacia, mas foi logo liberada. Chegou em casa exausta, mas satisfeita, conseguira ser mulher melancia pelo menos por um instante. Ficou até emocionada em pensar. Agora que já havia alcançado seu grande objetivo de vida, resolveu arranjar outro rumo: virar vaqueira era seu segundo sonho, era a melhor maneira de achar o boi de sua vida. Casaria e teria vários cabritos. Mesmo depois de casada, não conseguiria largar seu hobby secreto: fazer programas.

Feliz ano novo, pessoal!

Que tudo(de bom) se realize no ano que vai nascer.