quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

tem um leão chorando no meu armário

tem um leão chorando
no meu armário
faz dez dias ele está lá
não sei como veio nem por qual motivo
mas ele fica mugindo baixinho
um som doído doído
como se lhe tivessem arrancado
um pedaço
um pedaço do corpo,
um tufo de juba,
uma unha, a carne do peito
ele faz um solo suave 
todo encolhido
apertado no meu armário
quase não se move
(olhei pela fresta)
no mínimo lugar possível
lambendo por vezes o pelo
e depois lembrando
quando vê a própria pata
de um pedaço que não é dele
mas que lhe falta.

a murmurar seu lamento
na cara de fera uma solidão desamparada
não me percebe
mas reivindico os seus sentidos de felino:
que há contigo, leão
que razão leva o seu lamento?

ele então ergue o olhar
e posso ver a razão
(era a sem razão do sentimento)
ele me diz
“é pelo tempo, o tempo infinito que separamos um para o outro lá trás,
a mulher que amei e eu,
o tempo infinito que agora temos para sermos dois em vez de um
nessa selva
o tempo que ela diz já não poder mais
me dar
e eu não sei o que fazer de mim
e de tanto tempo
desabando sobre minha cabeça.”
e depois de um breve silêncio, ressentido:
 “nem de todas essas feras apaziguadas
pelo amor
que andam pela rua e se multiplicam
exibindo vaidosas diante de minhas retinas um confortável
par.”

deixei lá no meu armário o leão,
grunhindo discreto e chorando baixinho
sua melancolia
(o fim, a saudade e a falta de coragem).