sábado, 27 de fevereiro de 2010

Diálogo silêncioso

Pedi a Deus algumas oportunidades. Ele me deu e eu desperdicei todas elas. Fingi não perceber enquanto dentro de mim havia uma batalha incessante:
- Vai lá, foi você quem pediu. Está a alguns passos, é só seguir.
- Não, melhor não arriscar. Não vai dar em nada mesmo.
Deixei pra lá e segui meu caminho desviando das chances que Ele me deu.
- Deus, confesso, fui covarde. Será que não tem como haver uma segunda, talvez terceira ou quarta chance? Talvez seja pedir demais mesmo. Mas eu queria tanto. Tá, eu sei, eu sei que se eu quisesse tanto eu teria seguido. Mas ué, talvez meu medo fosse maior que minha vontade, ou igual, por isso não segui. Ah, não é tão fácil assim. Eu sei, não tem ninguém dizendo que é fácil e que eu preciso tentar mesmo assim. Eu sei de tudo isso. Me digo catolicamente. Já estou quase cansada de saber. Mas mesmo assim não faço, né? Pareceu até minha mãe agora. E eu não ligo pro que minha mãe diz. Ei, isso não é verdade. Eu sempre ligo pro que minha mãe diz. Tá, as vezes eu não ligo muito, mas o que é que tem? Se você liga pra tudo o que te dizem, enlouquece, sabia? Se você liga pra tudo o que diz para si mesmo também. É verdade. Melhor parar.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Pobres crianças

Pobres crianças. Basta tomar um pouco de consciência sobre o mundo que logo começam os tormentos. Entulham-nas de medos desnecessários só, talvez, para melhor controlá-las. Medo do escuro, medo de morcego que chupa sangue, medo do bicho papão debaixo da cama, fantasmas, bruxa... E elas, as crianças, ficam com esse tipo de pensamento em seu imaginário fértil. Passam a ter medo de dormir sozinhas, ir ao banheiro de noite, olhar em baixo da cama. Começam a imaginar personagens assustadores enquanto poderiam sonhar tranquilamente.

Pobres crianças. Os próprios pais criam seus medos para, depois, impacientemente desmenti-los. “Que bobagem! Fantasmas não existem. Não têm morcegos no seu quarto nem fantasmas no escuro. Me deixe dormir, não há nada embaixo da sua cama, filho!”

Pobres crianças. Fazem-nas acreditar que a vida precisa ser dura. Que precisam, a qualquer custo, amadurecer. Disfarçadamente, cortam as asas de seus sonhos.

Como sofrem. Aprendem com quem já desaprendeu a se deslumbrar com pequenas coisas. Crescem acreditando que se deve buscar enriquecimento. Que os talentos ficam esquecidos na adolescência. Que os desejos podem ser renunciados. Que é errado pensar e dizer, querer e fazer. Que crianças só dizem bobagens.

Como sofrem os pequenos, cheios de sonhos e instinto de liberdade. Só querem brincar com terra e bola, mas não podem se sujar nem suar. Só querem a companhia dos pais que estão ocupados demais para brincar. Ora crianças, adultos não perdem seu tempo com brincadeiras, estão trabalhando muito. “Vão assistir televisão!”. Aí, são colocadas em frente ao educador eletrônico. Que programação variada! Será suficiente para mantê-las paradas por um bom tempo. E depois do desenho: telejornal, novela, propagandas. Pronto, acesso a bastante coisa que não deveriam: violência, erotismo, estímulo ao consumo. “Não se pode protegê-las da realidade!”. Mais porcarias entulhadas na cabeça das crianças.

E como sofrem as crianças! Se fazem o que não devem, apanham. Se choram, apanham. Conhecem cedo o poder de controle da violência. Se erram de novo, aos berros lhe mostram o certo a fazer. E ainda querem que aprendam rápido. Não pode gritar, não pode sujar, não pode fazer bagunça. Só dizem o que não se deve fazer. Adultos podem tudo, criança, quase nada. Adultos são espertos, crianças nem gente são ainda. Talvez quando elas, as crianças, virarem gente, possam bater, possam gritar... Não virem gente!

Crianças... Descobrem cedo o sabor de um refrigerante lotado de glicose e corante, de uma batata frita pingando gordura saturada. Aprendem que é mais saboroso do que um pedaço de melancia ou uma fatia de beterraba. Ficam logo com o paladar viciado. Mais tarde chegam os problemas: diabetes, pressão alta... E ficam como os pais, que tem diabetes, pressão alta...

Talvez, se eles lembrassem de como é ser criança jamais repetiriam tais barbaridades. Lembrar de como é pensar e falar, querer e fazer, se emocionar e chorar. Entristecer e chorar também e logo em seguida, olhar para o lado e ver algo que lhes enche de alegria. E abrir um sorriso em meio ao choro. E esquecer a tristeza. E dar gargalhadas. E só aproveitar aquele momento. E esquecer que as coisas são tão difíceis. E querer estar perto de quem gosta. E sonhar. E ser criança de novo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Viajei

Sem muita bagagem, alguma pretensão e uma amiga do lado, viajei. Lá, esperava encontrar a praia perfeita. Não achei. Parecia o caos. Gente e mais gente. Minha ilusão de paraíso deserto foi por oceano adentro, naufragou. Em meio ao caos ressurgiram as vozes e os sorrisos conhecidos, aos poucos fui me reencontrando. Localizo-me, afinal. O caos naufraga junto às minhas frustrações iniciais, passo a gostar do lugar e a me divertir só pelo fato de estar ali.
Olhava para frente: mar e areia. Olhava em volta: amigos queridos.

Tardes de ócio, grandes pausas de silêncio, brisas suaves e fortes. Um rosto conhecido sempre ali a fazer silêncio, a fazer confissões, a responder perguntas estúpidas e a agüentar minhas manias. A sorrir de forma mansa. Um rosto tão antigo a mostrar trejeitos que eu desconhecia. Velhos traços de infância dando espaço aos recém adquiridos traços de amadurecimento. E eu ali pensando como não havia percebido antes. Reparei em algo, não sabendo muito bem no quê. Reparei sem perceber e sem querer: aquele alguém fluía diante de mim obrigando-me a deixar de lado antigas impressões.

Longas caminhadas noite adentro. Íamos longe evitando pensar no caminho de volta. Ar fresco e um céu de estrelas. Fins de tarde e maresia. Conversa jogada fora na praça. Partidas de cartas para quebrar o tédio que mais parecia descanso e não chegava a incomodar. Sorvete e crepe de palito e brigadeiro de panela e empada da padaria e café com leite e pão com manteiga e tudo tinha um sabor diferente.

A casa, aconchegante, parecia querer abrigar o maior número de ocupantes possível. Quanto mais gente, mais radiava, não se fazia lotada. A varanda em parceria com sombra fresca e vento. O banheiro tinha até duchinha! Era há duas quadras da praia.

O carro lotado e com um motorista que esquecera os óculos nos levava em visitas às cidades vizinhas. Que perigo, ainda estamos vivos. De um lado da estrada, praias vazias, do outro, casinhas, pequenas cidades ou espaços ocupados por vegetação.

Depois de adiarmos nossa ida, é chegada a hora de partir. Nos despedimos dos primos e tios e pegamos o ônibus para a próxima parada. Eu, minha pouca bagagem, a pouca pretensão que me restou e a amiga do lado. Chegamos à casa dos avós dela. Nos receberam com sorrisos e um almoço gostoso. Todos muito simpáticos, todos muito receptivos.

Os fantasmas que me assombravam pareceram ficar tímidos com a paisagem e a calmaria do lugar, quase não deram as caras. Talvez a distância de casa também exigisse estar bem.

Tardes de ócio. E o rosto conhecido continuava a me fazer companhia e a me surpreender com seus trejeitos. E a cada dia eu confiava mais nele e gostava mais de estar ali e não tinha vontade de ir embora.

Após adiarmos nossa ida mais uma vez, compromissos que não puderam ser esquecidos nos fizeram regressar ao Rio. A cidade estava quente e movimentada como de costume. Tive saudade da brisa fresca, das noites estreladas, da companhia, do café com leite...