domingo, 19 de março de 2017

ilustração de um corpo partido

atalho do meu corpo
quebrado
transporte de carícias
e dor
as mesmas mãos fazem
ninho
e estrago
as mesmas pernas que
suportam
caminham
meu centro
meu vértice
meu antro
ando
infinito

sexta-feira, 3 de março de 2017

ofício

Dedico muito do meu tempo à leitura dos mesmos poemas
Atravesso infinitos meses ouvindo os mesmos ritmos
Acho que por isso sucede minha especialização 
em certos 
sentimentos.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

tem um leão chorando no meu armário

tem um leão chorando
no meu armário
faz dez dias ele está lá
não sei como veio nem por qual motivo
mas ele fica mugindo baixinho
um som doído doído
como se lhe tivessem arrancado
um pedaço
um pedaço do corpo,
um tufo de juba,
uma unha, a carne do peito
ele faz um solo suave 
todo encolhido
apertado no meu armário
quase não se move
(olhei pela fresta)
no mínimo lugar possível
lambendo por vezes o pelo
e depois lembrando
quando vê a própria pata
de um pedaço que não é dele
mas que lhe falta.

a murmurar seu lamento
na cara de fera uma solidão desamparada
não me percebe
mas reivindico os seus sentidos de felino:
que há contigo, leão
que razão leva o seu lamento?

ele então ergue o olhar
e posso ver a razão
(era a sem razão do sentimento)
ele me diz
“é pelo tempo, o tempo infinito que separamos um para o outro lá trás,
a mulher que amei e eu,
o tempo infinito que agora temos para sermos dois em vez de um
nessa selva
o tempo que ela diz já não poder mais
me dar
e eu não sei o que fazer de mim
e de tanto tempo
desabando sobre minha cabeça.”
e depois de um breve silêncio, ressentido:
 “nem de todas essas feras apaziguadas
pelo amor
que andam pela rua e se multiplicam
exibindo vaidosas diante de minhas retinas um confortável
par.”

deixei lá no meu armário o leão,
grunhindo discreto e chorando baixinho
sua melancolia
(o fim, a saudade e a falta de coragem).

quarta-feira, 13 de abril de 2016

“aquele que vem do calcanhar” ou “que Deus o proteja”

Nunca mais o beijo
da mulher que amou 
e nenhum outro amor.

Nunca mais as delícias naturais
e as construções do homem.

Nunca mais o mar,
nunca mais o céu,
nunca mais o cheiro do filho.

Nunca mais caminhar
e sentir cansaço.
Encher o pulmão d'ar e beber água gelada.
Nunca mais mastigar.

Nunca mais mãe e pai, 
nunca mais almoço de domingo.
Adeus, amigos.

Um jovem quando morre, 
leva muito 
da vida ainda
pouco vivida.


13/04/2016





domingo, 14 de fevereiro de 2016

Quando o galo cantou

eu ainda estava agarrado ao seu pé
e a sua mão.
os músicos mais notáveis tocam
em seus telhados
junto de negros gatos
em dias de claridade
azul, ninguém faz a mais remota
ideia
as vidas mais ilustres
são as não circunscritas
nos imaginários
inférteis.
vê uma camisa abotoada
ao incompleto
sem saber que hoje
he amado una mujer
a mais linda
não fumou por que não fuma,
apesar de que suga
ao menos três cigarros por ano.
levantou-se
subiu no telhado da casa
para tocar saxofone.
não foi dia de feira
nem de apanha dos morangos
mas he tomado água de coco
e comeu morangos.
a semana passou assim
e nada existiu mais
satisfeito.
a mulher por sua vez
preferia seriguelas bem maduras
e justamente esperou o dia
de feira para abastecer
a geladeira com caldo de cana
sem saber que o homem
que assoprava no teto
era o mesmo que descascava
cana e coco com dentes.
fazia anos
ela não comprava mais roupas
começou a costura autodidata.
seus pelos não arrancava
com os outros,
e sua vaidade era manter a pele negra bem
hidratada.
havia uma coisa que faziam
sem comentar a ninguém:
ir ao teatro.
depois perguntavam-se
“e aí, gostou?”
nunca gostavam da mesma peça
ao mesmo tempo
era um acordo por acaso
calhou de ser assim
se um gostasse, o outro não.
na verdade, não sou músico,
ele uma vez disse.
eu sei, mas acho que você é
sim
ela respondeu sem saber
que daquele dia em diante o consagrara
o maior musicista do país.
certo de fazer melodias simples demais
subia ao telhado
tal qual galo madrugador
para tocar melodias que dessem
boas notícias
a ela.
nunca se deram conta
que desde o primeiro dia
viviam para dar boas notícias um ao outro:
era a Lealdade.
durante o carnaval ela admitiu
não saber as regras da festa.
ele a olhou, não disse nada
e ficou claro que também não sabia.
viveram dois dias da folia
e ao final
ainda não sabiam bem.
Pablo Neruda morreu de golpe
no Chile
porque era o poeta do amor
eterno
e não aguentou.
não aguentou o quê,
ele quis saber.
não aguentou o tédio
de elevar lealdade
ao governo militar,
foi embora para se manter leal
a Matilde.
gostaria de chamar minha filha
de Matilde, ele disse.
gostaria de chamá-la “Caetana”.
era assim que cada um desaprovava o nome
eleito pelo outro
mas sabiam que na hora
viria consenso.
se um dia você desejar
outra mulher,
ele falou,
e quiser ir embora dos meus braços para viver
lá,
eu ainda vou querer
te dar boas notícias.
E mais do que isso,
vou precisar encostar meus lábios nos seus lábios
para te dar
notícias.
seus olhos são grandes o bastante
para que não me esconda nada,
ela disse,
toda vez que alguma coisa ameaça
eu sei.
e se acaso algum dia um homem te leve de me preferir,
ela continuou,
é só eu morder um morango
ou uma maça
para continuar a ter
seus beijos.
não era a primeira vez
daquela conversa, e a cada uma
iam aprimorando a tristeza
que passava a melancolia
e logo se perdia
num silêncio que era o medo
de fundo
do fim acobertado
pela distração cotidiana
ou pela alegria de serem assim
tão juntos.
Anote aí, ela disse,
Na verdade eu prefiro melão,
E eu, ele disse, sou mulher e escrevo alguns poemas
Sobre as suas fotografias.
deixe esse ponto brilhar no atlântico
sul.







quarta-feira, 9 de setembro de 2015

ai, uma saudade

As saudades que sinto de ti 
não doem como antes,
serenaram.
Chegam invisíveis,
circulam, instalam-se em meu corpo.
Alojam-se em alguma
parte de meu coração,
migram ao meu cérebro-pensamento
(quando aqui, do dormente coração já transbordaram).
De início ela, 
a saudade,
é espanada e o pensamento
se distrai por não crê-la.
Esta, resignada e sem escolhas,
insiste, apenas  –
seu caráter não permite que se vá
sem persistências.
Põe-se de novo em correnteza e volve ao coração,
Que de sístole a devolve ao topo do corpo.
Os olhos então atinam em piscadelas,
como constrangidos pela sensação de serem
observados.
O pensamento espreita
imagem do ser amado
E suspira discreto
“ai, é uma saudade”.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Formigas

Íamos caminhando a passos pequenos,
passos de formiga.
Os meus, duros, de calcanhares agudos.
Os teus, silenciosos, de almofada.
Íamos nós, pisando em areia fina e antiga
para nós desconhecida.
Sempre caminhando,
sempre e amiúde, íamos.
O terreno indicava o início,
nós não fazíamos ideia.
Acreditávamos já estar no fim
quando
demos por nossos pés,
íamos subindo.
A areia agora em grãos pedregulhosos,
caminhávamos a passos miúdos
num aclive geográfico.
A subida ganhou contorno
de exaustiva escalada.
Nossos passos não aceleravam os pés
lentos,
que queriam correr,
tentar alcançar solo menos sôfrego
e doído.
Por que prosseguir se
nos causava tamanho sofrimento?
Tu e eu íamos subindo
a crer estarmos próximos do fim.
Caminhando,
passos sempre lentos,
nossos corpos envergando
as colunas jovens,
atirando as cabeças para frente.
“Por que não corres?”,
Gritei, tinha raiva, não entendia nada.
“Por que não te afastas?”,
Tua voz chegou baixa e firme,
não estavas cansada.
Então subimos, caminhávamos, o passo sempre o mesmo
A crença ora no fim, ora no infinito.
Finalmente chegamos a um topo.
Para nossa surpresa
principiou ali solo suave de gramínea
fresca.
Nossos pulmões se alargaram
involuntariamente.
Tu seguraste-me as mãos num instante gracioso,
Eu apertei as tuas de volta, cheia de alegria.
Começamos a correr,
Por vezes nossos pés saíam do chão,
tocavam o ar,
às vezes ríamos muito.
Depois, passavam-se horas
de silêncio apaziguador.
Às vezes cerrávamos o cenho,
nos afastávamos.
Aprendemos a alternar o jeito da caminhada,
íamos assim
E já mais adiante percebemos
(e nos alegramos):
Íamos assim.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

poema de um dia de frio

que nem passarinhos
nós num dia de frio
acocoramo-nos em nosso poleiro
bem de pertinho.

teu rosto quentinho,
a cara colorida de um passarinho,
acolhe tão próximo
o meu.

é quarto dia de inverno.
todos os passarinhos avolumam suas penas.
vão e vem,
anônimos.

em banquinhos nos acomodamos
sob a copa de grande guarda-chuva.
teus braços, pescoço, bochechas me aquecem.
sua voz macia é canto baixinho
e me aquece também.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Mito, ou Fuga

Saudade dos poemas
que eu escrevia nos tempos de outrora.
Saudade dos versos frescos e cheios
Que já fiz em tempos de outrora.
Hoje estou vencida e já não os tenho.
Ressentida, com perdas irrevogáveis,
estou pálida,
faz tempo que não vou à praia.
Jogo charme para três ou quatro, os ganho todos,
E me retiro do aposento.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Amor pertinho

Compreende, mas
não aceita; como poderia o
amor
já estar assim encaminhado?
Por isso deve ser o peso
tenso atrás da
cabeça.
É que amor é
escolha; primeiro
um imperativo
que depois acertado
num fluxo
torna-se escolha.
Arredar, seguir, nadar ou ir para
a beira e depois
pular
fora e sacordir-se; é escolha.
Já tão cedo o amor
escolheu estar
pertinho e eu ouso perguntar
“mas será?”.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O homem sem letreiros

Acima de sua cabeça o céu é vasto
sem telhas
O ritmo de seus pensamentos
É o das nuvens.
Homem sem letreiro
nem relógio digital
é visto da estrada pousando o queixo
sob as mãos ancoradas na enxada.
Não evoquei cena, eu primeiro vi.

Deve ter uma casinha azul, uma mulher, apenas dois filhos
E amar para ele é defender.
Tem TV e fala de acontecimentos recentes
mas há espaço, há espaço em tudo,
tanto que as vezes é como esquecer-se.
Enquanto cremos amar, ele defende
firme, calmo, certeiro, simples
defende.
Que céus acima de sua cabeça, e que pensamentos terá?
Que vida de silêncio e cultivo.
Enquanto nos distraímos confusos, ele defende
e defenderá.

Que ares em seus pulmões, e quanto tempo, quanto tempo lhe cabe.
O homem sem letreiros nem escusas defende:
veste-se, come, é, caminha, tem prazer, ri, dorme, desperta
Isento de persuasão.
Anda por entre as vaquinhas, tão natural.
Todas as coisas cada uma em seu tempo
ouvindo os movimentos
particulares do mundo.
O homem sem letreiros é lúcido,
para e escuta.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Dois

Dois cheios enchem
um vazio maior.
Vão embora, imagina, dois.
Um vazio mais vazio.
Um vazio tão tão grande.
Dois cheios deixam um vazio
tão maior quando se vão 
(ou quando ficam pelo meio).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Festa da insignificância

Um dia as pessoas todas morrem,
antes perdem a memória,
antes envelhecem, 
antes perdem
a saúde
ou deixam fraquejar
o amor.
Sem a menor importância,
deixamos a vida.
O inadiável para nunca mais.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

festa no correio

todo dia eu acerto
uma flechinha de riso em seu peito
o coração se enche de alegria
e vem então você me dizer agradecimento
eu sorrio em surdina satisfeita
vitoriosa
conto vantagem e no dia seguinte já arrisco de novo
vem você então me dizer agradecimento
e se me vê vem você sorrindo canto a canto
e agarra o meu braço
e não solta até ter que soltar
e ganho beijinho até não poder mais ganhar
eu sorrio em surdina satisfeita
me gabo
de tanto em cheio e na mosca e de tanta correspondência
colorida
na caixinha pequena da minha vida.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Clareza

Por vezes meus olhos abrem-se mais
 e carrego o coração na beira.
A luz incide no verdejar da árvore
o vento venta e as pessoas ventam passando rápidas.
O sol alto escondido
O concreto apara, a roda veicula
O dia clareia, clareia, clareia.
Está tudo no reflexo dos olhos.
O dia
clareia clareia clareia
Impedimento não há em lugar algum.
O coração na ponta dos olhos,
é como estar apaixonada – por tudo, pelos movimentos todos
Uma clareza absoluta, inconsequente, louvável.
Tudo ficou límpido de repente,
sigo um impulso: escrevo.