quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Armado

Porque todos os dias eram iguais. O mesmo ônibus, o mesmo caminho, o mesmo andar, o rosto trancado, o coração protegido. Todos os dias eram os mesmos, a mesma falta de novidades. Sentia-se vazio. Não consigo me livrar do estigma de solidão, pensava. Nunca se acostumara a ser sozinho, justamente o que sempre fora. Alegava que... Ora, estava cansado demais para alegar. Parara de arranjar pretextos, obrigara-se a ficar calado, fingia bem que acostumara-se. Certo dia, deram-lhe uma luz, um prazer tolo, ficou radiante. Queria aquilo para sempre, nunca mais serei sozinho, pensou. Mas no dia seguinte voltara à solidão sem ao menos dar-se conta. Pois tinha a cara dura, o coração armado, e nem percebia. De vez em quando sentia uma inexplicável vontade de chorar, não era bem vontade, era um súbito de chorar. Seus olhos lacrimejavam e ele só notava-se chorando quando percebia que tentava fazer com que ninguém olhasse para seu rosto.
As vezes alguém se aproximava, as vezes alguém o amava as escondidas, mas é que ele tinha a cara dura e o coração armado, nem via. Se lhe sorrissem, ele guardava o sorriso no coração, se alegrava, se envaidecia, até. Mas no dia seguinte não olhava de novo no rosto de quem lhe houvesse sorrido – tinha a cara dura e o coração armado. Só sabia amar de longe, olhar de longe, viver de longe, e sorrir passando rápido, é que tinha medo de gente, é que duvidava muito de se por em prática. É que tinha a cara dura e o coração armado. Se a cara não fosse dura, o coração, que palpitava-lhe no peito querendo baixar a guarda, faria o semblante todo esmerar-se de si. E os olhos, doces, até então disfarçados pela cara, apareceriam e ele estaria desprotegido.

Um comentário:

  1. Mais como eu estava com saudade dos seus lindos textos que me fazem pensar e sentir. Saudade luluzinha rsrs. Beijos

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