quarta-feira, 23 de março de 2011

Sopro

Dormia um sono pesado. Dormia de exaustão, porque o corpo já não se agüentava acordado a esta altura da noite, porque já não sabia o que fazer de si e o sono veio-lhe silencioso demais para ser negado. A barriga indo e vindo, enchendo e esvaziando de ar, sinalizava a respiração que era vitória sobre a morte. A serenidade do seu rosto adormecido não era partilhada ao acordar, quando a noção das coisas parecia-lhe vaga e passageira e todos os planos para o futuro careciam de pilares firmes. Tudo o que tinha era a sua vida e a dos que estavam a volta e sua fé - dava graças a Deus por isso.
Apesar de tudo, dormia. Dormia um sono que ao mesmo tempo era alívio e pesadelos. Mas dormia. Dormia porque não lhe restava mais o que pudesse fazer, era modo de chegar mais depressa o dia seguinte e de não ver o tempo passar. Virou-se para o lado e ajeitou a cabeça no travesseiro como se tivesse acordado, coçou o nariz e deitou a mão adormecida no sofá. Esticou as pernas involuntariamente e tocou com os pés o alguém que estava sentado, acordado, ao seu lado, na outra ponta do sofá, zelando o sono alheio sem conseguir encontrar o seu próprio. Seus olhos amigos olhavam o ser adormecido tentando dar-se conta do que aquela cena de fato representava. Por um instante conseguiu e sabia que essa consciência era fugaz e que logo sentiria-se incapaz de definir ou saber o significado daquele sono pulsante ao seu lado. Era vida, vida que havia ali. Teve vontade de chorar. Sentiu alívio por poder ter aquele alguém sob seus olhos. Continuou com os olhos fixos, quase vidrados, sem conseguir desviá-los dali, sentindo uma gratidão tão grande que sentiu calafrios e seus pêlos arrepiaram-se. Enquanto a noção de vida percorria-lhe de uma maneira clara e eficiente, não podia desgrudar os olhos do ser que dormia, queria prolongar essa sensação. Pegou a mão que repousava adormecida no sofá, levou-a aos lábios e deu-lhe um beijo leve e luminoso, quase como uma benção secreta, sentindo-se tão feliz por sentir aquele calor, parecia que havia uma brisa fresca dentro de si. Fechou os olhos, ainda segurando aquela mão quente entre a sua, que já começara a suar, e começou a orar. Em sua oração agradecia com todas as suas forças e queria que houvesse ainda mais fervor em suas preces, de modo que, ao rezar, apertava os olhos já fechados como se aquilo pudesse fazê-las chegarem mais rápido e fortes ao céu. Antes que tivesse consciência do término de sua oração, adormeceu.

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